Se o
pé de cajarana falasse
Ele deve ter pra mais de cem anos, aquele pé de cajarana,
plantado pelos seus bisavós, ao lado da casa grande - onde encontra-se intacto,
pois sua raízes ficaram-se nas brechas de um enorme lajeiro que havia naquela localidade, na
tentativa de buscar água nos lençóis subterrâneos, já que a região é de pouca
chuva. Era debaixo dele que sua avó brincava quando criança, além de se
alimentar das deliciosas frutinhas, as quais podem ser saboreadas ainda
inchadas. Sua mãe teve a mesma oportunidade, brincava com os irmãos, sempre que
chegava da roça, pois trabalhava todos os dias plantando, carpindo, colhendo as
batatas doces ou fofando a terra em volta ao açude Lenacal.
Olívia também teve seus momentos prazerosos e
inesquecíveis, vivenciados junto com sua prima Maria José. Elas saiam de casa,
assim que terminavam de fazer o serviço doméstico- já que elas foram criadas
sem grandes esforços, quer dizer, não trabalhavam na lavoura, mas bem que para
fazer a lida da casa, elas tinham que buscar água na cacimba que ficava a uma
légua. Só então é que começavam a lavar louças e limpar casa. A roupa não,
porque era lavada no açude, uma vez na semana e iam junto com as mães.
O bisavô de Olívia, que também já era bem velhinho, pois
já tinha feito o aniversário de 100 anos, morava na casa grande, junto com uma
filha que tivera fora do casamento, com uma negra, que viera na época para cuidar
da sua esposa, que se encontrava doente. Junto com a mãe dela é claro, pois a
mesma nunca tivera marido para amparar-lhe. Apesar de não terem mais nenhum
relacionamento - pois antigamente era assim, os homens mantinham relações com
suas empregadas, enquanto estavam lhe servindo, depois as abandonavam. Ainda
bem que, ele deixou que esta mulher, ficasse sempre na casa grande e criasse
sua filha, ainda deu em vida uma herança para ela, apesar de nem ser registrada
no seu nome.
“Padim”, como era chamado por todos os bisnetos, vivia
uma vida restrita por não ter mais condições de sair sozinho por aí, ficava a
maior parte do tempo na sala, sentado em uma preguiçosa, ao lado do quartinho, que
ele fazia questão de manter sempre equipado de rapaduras, queijos e bananas, com
o intuito de saciar a fome deles quando viessem visitá-lo. O que acontecia
diariamente pelas crianças maiores, as que estariam na adolescência, como se
diz hoje, porque naquela época não tinha disso não, ou se era criança, ou se
era adulto. Por isso a infância era prolongada e as pessoas viviam bem mais
felizes, sem aquela busca incessante do ter.
Aproveitando da fragilidade do biso, que já não enxergava
bem e nem conhecia os netos e bisnetos direito, pois também eram tantos, que até
um jovem se confundiria. Olívia e Maria José subiam os mais de dez degraus que
havia na calçada da frente, que dava na porta de entrada da casa. Lá estava o
velhinho de barba e cabelos brancos, parecendo um Papai Noel, sei bem que para
elas isso tinha pouco significado, porque também não tinha essas coisas de hoje
em dia, de ganhar presentes caros. Nem mesmo se falava essas coisas de Papai
Noel, pois lá ele não ia nunca. O que elas sabiam é que se comemoravam o
nascimento de Jesus, Papai Noel nunca existiu e pronto. Essas coisas de ganhar
presentes eram coisas impossíveis para qualquer criança que mora para aquelas
bandas. O que elas ganhavam eram as bananas, as rapaduras e os queijos. E mesmo
assim gostavam tanto que aprontavam poucas e boas com o pobre do velhinho.
Todos os dias
como já disse antes, elas iam à casa do “Padim”, chegavam perto dele e tomavam
a bênção. Ele mais que depressa as abençoava e logo perguntava se queriam uma
bananinha, um pedacinho de queijo ou uma rapadura. Elas balançavam com a cabeça
dizendo que sim, não abriam a boca, pois receavam que o mesmo reconhecesse suas
vozes, quando as mesmas voltassem. Na hora que recebiam os alimentos, as
meninas desciam os degraus, escondiam-se sentadas no tronco do pé de cajarana,
comiam tudo que ganhavam e voltavam para pedir bênção novamente. Como o
velhinho mal enxergava os rostos das meninas atendia pelo o impulso, achando
que se estavam tomando bênção é porque seriam outros bisnetos, e já ia logo
perguntando: Vocês querem uma rapadurinha? Elas respondiam que sim, pegavam
junto com o queijo e as bananas, desciam os degraus, escondiam-se no tronco do
pé de cajarana novamente para comer, fazendo isso por várias vezes, até estarem
totalmente saciadas.
Certo dia Olívia
disse para a prima Maria José que iria pedir uma garrota a “Padim”, e assim o
fez. Chegando lá subiu os degraus, chegou bem perto do velhinho que estava
sentado na sua preguiçosa, pediu “bença”e falou: _ “Padim” me dê uma garrota!
Ele respondeu mansamente: _ Deus a abençoe, minha “fia” quer uma bananinha? Ela
dessa vez disse não. E insistiu: _ “Bença Padim”, “me dê uma garrota”! Ele
novamente a abençoou e disse: _ Minha “fia” quer um pedacinho de queijo! A
resposta também foi não, e continuou:_ “Padim”, me dê uma garrota! O velho já
estava ficando confuso, mas ainda disse: _Minha “fia” quer um tico de rapadura?
E ela disse: _ Não, “Padim” me dê uma garrota! Ele sem ter mais argumentos, com
aquela voz fanha, disse: _ Mande seu pai ferrar uma garrota para você! Ela
desceu os degraus da calçada correndo, indo ao encontro de Maria José que
estava escondida no tronco do pé de cajarana. Contou o cansaço que deu no
velho, como ganhou a garrota e disse que agora ela subiria para ganhar a
comida. Como sempre, ela foi e voltou em seguida trazendo as bananas, o queijo
e a rapadura. As duas comeram ali mesmo e em seguida foram embora para casa.
Uma vez, as
duas em cima do pé de cajarana chupando as frutas que estavam madurinhas - quando
estão maduras elas ficam amarelas e cheirosas, um chamativo para qualquer
pessoa que passa, pegando as que ficam nas galhas baixas - então Olívia se
aventurou subindo mais alto para pegar umas bem graúdas que estavam em um cacho
lotado de frutas maduras. Só que ela não teve tanta sorte, escorregou e caiu
escanchada em cima de um toco, das raízes externas do pé de cajarana. Foi um
verdadeiro milagre, pois não pegou no seu órgão genital, mas bem na virilha, que
imediatamente ficou roxa com o sangue pisado. As duas não sabiam o que fazer,
pois tinham medo de contar aos pais e serem castigadas. Foi aí que Olívia teve
a ideia de vender a garrota. Subiu os degraus da calçada com dificuldade,
encontrou o velhinho em sua preguiçosa e disse: _”Padim” quero vender minha
garrota! Ele pegou o dinheiro, entregou-o em sua mão e disse:_ Pode ficar com a
garrota. Ela saiu dali e foi comprar remédio escondida dos pais. Foram vários
dias tomando antibiótico, mas felizmente sarou. Depois dessa proeza, ela vendeu
a garrota várias vezes, pegava o dinheiro e a ganhava de volta.
Como o velhinho
já não ouvia e nem enxergava bem, foi tentar descer os degraus da calçada, “resbalou”
e caiu no lajeiro desmaiado. Maria José e Olívia que brincavam debaixo do pé de
cajarana, correram para chamar a filha bastarda do velhinho, aquela que morava
com ele. Vieram alguns netos também e o levaram para a cama. Agora ele
sujeitava ficar acamado, pois isso só aconteceria se estivesse doente mesmo,
pois passou a vida inteira dormindo de rede. Passado um ano que o velhinho
sofrera o acidente, os cabelos e a barba alvejaram por completo, parecendo uma
maçã de algodão quando acaba de abrir o caroço. Olívia e Maria José se
apaixonaram cada vez mais por ele, apesar de já não ganharem as bananas, os
queijos e as rapaduras, pois o mesmo não se levantava mais da cama, elas, por
sua vez, continuavam indo todos os dias brincar debaixo do pé de cajarana.
Como nessa região as chuvas são temporárias e nunca faz
frio, quando chove parece que as crianças e até os bichos ficam doidos para se
molharem, é aquela alegria sem fim. Foi numa tarde dessas de inverno - como é
chamado lá esse período chuvoso - estando as meninas como sempre a brincar, dessa
vez correndo em volta da casa-grande, tomando banho de chuva, que elas viveram
um dos momentos mais tristes de suas vidas. A água caia forte das biqueiras,
elas em baixo, pulando e cantarolando, quando viram algo diferente acontecer no
alpendre da casa-grande. Neste dia suas mães haviam ido visitar “Padim” e
ficavam sempre uma na cabeceira da cama dele, com a vela a postos, esperando o
seu momento final, pois antigamente ninguém morria sem se colocar vela mão.
Dizia-se que a luz, fazia a pessoa estar na presença de Deus. De repente o
corre-corre, um entra e sai do quarto, elas resolveram entrar lá dentro para
ver o que estava acontecendo, viram o que não queriam ver, era os últimos
suspiros do biso, morreu como um passarinho. Neste dia, acabou o banho de
chuva, ficando o silêncio do velório.
As meninas ficaram vários dias sem voltar no pé de
cajarana para brincar, devido à tristeza que sentiam com a morte do biso.
Quando passavam em frente, pareciam vê-lo sentando em sua preguiçosa, no
alpendre da casa-grande. Também mudou tudo lá, a casa que agora seria dos
herdeiros, passou a ser habitada por outro filho, um dos legítimos, e pensa num
velho chato e mesquinho, não queria mais que as crianças brincassem em baixo do
pé de cajarana e nem catassem as frutas para comer. Ainda bem que “Ti Chico”, o
filho de “Padim”, que agora tomava conta da casa, morava mesmo era na cidade, e
vinha só nos finais de semana. Sendo assim, Olívia e Maria José, podiam brincar
durante a semana, e faziam isso todos os dias quando voltavam do Grupo-escolar,
o qual era ali mesmo no sítio. Ficavam sentadas no seu tronco, comendo as
frutas e conversando, até o anoitecer, que era quando suas mães exigiam que
voltassem para casa. O tempo passou, as meninas, hoje vovós, continuam com a
lembrança viva do pé de cajarana, ele, por sua vez, continua fazendo a alegria
de outras crianças, com certeza se falasse teria muito mais coisas para contar,
em mais de um século de sua existência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário